Por Edvard Munch - Google Art Project, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=37624942
Na última sexta-feira, dia 31 de outubro, os protestantes mais
uma vez lembram o ato de Lutero que inaugurou a Reforma que mudou o
cristianismo no mundo.
Em 2017, nos 500 anos do anuncio das 95 teses de Lutero, dei
uma Palestra na Escola de Museologia da UNIRIO acerca da influência da Reforma
na cultura ocidental.
Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. Havia
muito pouco tempo em que eu iniciara os estudos sobre esse tema e estava diante
de um público majoritariamente ateu e que analisa a arte eminentemente do ponto
de vista científico, o que é natural do ambiente acadêmico.
Ao se Falar de arte e cristianismo no meio acadêmico
geralmente são lembradas as contribuições de mestres ligados à Igreja Católica até
o renascimento e o barroco, a
iconoclastia protestante e a aproximação de artistas e burgueses em países
reformados. Esse é o censo comum, exceto nos cursos ligados à cultura, onde o
tema merece atenção maior, ainda que esteja na periferia do interesse
acadêmico.
A partir daí, o que
se apresenta de maneira muito consolidada é a convicção do descolamento de fé e
arte. No século 19, predominou entre intelectuais e na academia um esforço para
que esse descolamento fosse irreversível e definitivo. Fruto
de um processo iniciado no Renascimento, acentuado no Iluminismo e em muito
alimentado por erros das Igrejas ao longo dos séculos anteriores que diziam
muito sobre o que essas instituições faziam e muito pouco sobre o que Jesus ensinou.
O que ainda pode-se perceber é a
referência de rituais e símbolos de religiões orientais atuais ou de povos
antigos nas representações artísticas de autores ocidentais contemporâneos.
Algumas vezes com certa reverência, mas
via de regra sem nenhuma relação de fé.
O Final do século XIX anunciou um novo século em que as
religiões perderiam muito espaço, principalmente na Europa. Com isso, a razão e a ciência seriam os
caminhos naturais e obrigatórios para qualquer análise. Em pouco tempo, o mundo passou a conviver com
o anúncio feito Friedrich Nietzsche de que Deus estava morto, com Freud tendo
colocado as religiões judaico-cristãs na base dos complexos e traumas da
humanidade e o marxismo tendo eleito as religiões como inimigas da classe
operária. Ou seja, a filosofia, a psicanálise e a sociologia tinham colocado no
campo das piores coisas da humanidade a fé cristã.
Voltando à minha palestra em 2017, apesar de estar entre
muitos colegas queridos, o ambiente não era muito animador. Pra piorar, o meio
cultural brasileiro havia sido sacudido pela oposição de igrejas à exposição
Queermuseu: Cartografia da Diferença na Arte Brasileira, sob a acusação da
mostra ser um incentivo à pedofilia, zoofilia e blasfêmia.
O formato proposto para a palestra não permitia uma tempo
muito grande para apresentação. Preparei um material, produzi um vídeo com
cenas do filme sobre a vida de Lutero e
fui para Universidade, onde dividiria a fala com um colega do Museu onde
trabalho.
Eu estava apreensivo e me sentia inseguro, mas a primeira parte da
apresentação fluiu bem. No entanto, na medida em que eu ia falando e tentando
seguir um roteiro o mais laico possível, olhava para a plateia, percebia as
feições das pessoas e as ideias me fugiam ao senso da razão. Falavam mais forte
em mim as motivações subjetivas da fé.
Como dizer a eles o que eu acho que Deus fez e tem a fazer
no campo das artes, sem gerar um ambiente hostil? Os argumentos fugiam da minha
mente e a minha vontade era dizer um monte de coisas que não saíam. Terminei a
apresentação praticamente lendo o que eu projetava, sem conseguir desenvolver
nada além daquilo.
Não foi dos meus melhores momentos em público, mas acho que
o principal objetivo que eu traçara havia sido alcançado. Eu queria dar o
primeiro passo e dei e fazer esse debate
aparecer na Universidade em que estudei.
A Palestra na UNRIO em 2017.
Transcorridos três anos desde a Palestra, eu entendo melhor
o que aconteceu naquele dia. Eu comecei meus estudos buscando as influências da
Reforma na Cultura e me deparei com o espaço em que Deus havia sido tirado de
cena e eu tentava mostrar onde ele estava. Fazia um esforço enorme para buscar
justificativas racionais, históricas e científicos para algo que é sobrenatural
e inexplicável muitas das vezes.
Evidentemente, é preciso estudar e buscar as causas desse
afastamento e trazer ao debate as consequências da Reforma para a Cultura. No
entanto, justamente no último dia 31 de outubro fui tocado profundamente ao ler um texto enquanto estudava a vida do
artista expressionista norueguês Edvard Munch – um dos gênios da pintura universal, nascido e
criado em família protestante e cuja
obra reflete as angústias humanas entre séculos XIX e XX.
O texto é de Paul Tillich, teólogo protestante e Filósofo da
Religião, e está no seu livro – A Coragem de Ser. Ele diz que no final da
Antiguidade, as pessoas estavam tomadas pela ansiedade da morte pela fome,
doenças e guerras. No final da Idade Média, após anos de opressão religiosa, a
ansiedade das pessoas era baseada na culpa. Em meados do século XX, segundo
Tillich as pessoas estavam espiritualmente ansiosas pela falta de sentido em
suas existências.
O Teólogo talvez não imaginasse em que condições a
humanidade chegaria aos anos 20 do século XXI. Depressão, psicopatias graves,
suicídios, incertezas, desigualdades, violência, fome, miséria, guerras e intolerância
tomam conta da vida das pessoas, sem que elas consigam identificar uma razão para
suas existências.
O homem não venceu a morte. A fome, a guerra e a miséria não
param de crescer. O homem não perdeu o sentimento de culpa e não conseguiu
encontrar nenhuma resposta para sua existência nas soluções que ele criou ao “matar
o Deus espiritual” e ter levantado um altar para razão.
Revejo biografias de artistas desde o final do século XIX
perdidos em suas angústias. Muitos que ultrapassaram todos os limites do
sofrimento existencial e físico só tiveram reconhecimento muito depois de sua
morte. As análises desse sofrimento passaram pelas reflexões da Indústria
Cultural, pelo complexo mundo da psicanálise e pela teoria da história da arte. Todas indispensáveis. Mas muito pouco, ou quase nada sobre a alma
desses jovens artistas. Muitos buscaram a metafísica, religiões de outras
culturas e drogas, como se o Deus
Cristão lhes fosse proibido. Buscá-lo era quase uma afronta à arte.
Ao opinar sobre um possível retorno da relação arte e fé
(especialmente a fé cristã), Theodor Adorno, filósofo da respeitada Escola de
Frankfurt, rechaçou e essa hipótese de maneira enfática no artigo “Teses sobre
religião e arte”. Sua posição, mais que
uma constatação, estava envolta numa torcida para que isso nunca mais pudesse
ocorrer.
Este é um tema que não se esgotou está colocado diante dos
artistas e estudiosos da arte que confessam a fé cristã. Creio que fé, Cristo e
arte ainda terão muito a dizer aos corações inquietos desse século.
Referências:ADORNO, Theodor. Teses sobre Religião e Arte. Marxists, 2018. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/adorno/ano/mes/teses.htm>. Acesso em 02/11/2020
TILLICH, Paul.A coragem de Ser. São Paulo: Paz e Terra, 1976.