segunda-feira, 2 de novembro de 2020

No 31 de Outubro, ao lembrar a Reforma de Lutero, O Grito de Edvard Munch.





Por Edvard Munch - Google Art Project, Domínio público,  https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=37624942


Na última sexta-feira, dia 31 de outubro, os protestantes mais uma vez lembram o ato de Lutero que inaugurou a Reforma que mudou o cristianismo no mundo.

Em 2017, nos 500 anos do anuncio das 95 teses de Lutero, dei uma Palestra na Escola de Museologia da UNIRIO acerca da influência da Reforma na cultura ocidental.

Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. Havia muito pouco tempo em que eu iniciara os estudos sobre esse tema e estava diante de um público majoritariamente ateu e que analisa a arte eminentemente do ponto de vista científico, o que é natural do ambiente acadêmico.

Ao se Falar de arte e cristianismo no meio acadêmico geralmente são lembradas as contribuições de mestres ligados à Igreja Católica até o renascimento e o barroco,  a iconoclastia  protestante  e a aproximação de artistas e burgueses em países reformados. Esse é o censo comum, exceto nos cursos ligados à cultura, onde o tema merece atenção maior, ainda que esteja na periferia do interesse acadêmico.

A partir daí,  o que se apresenta de maneira muito consolidada é a convicção do descolamento de fé e arte. No século 19, predominou entre intelectuais e na academia um esforço para que esse descolamento fosse irreversível e definitivo.   Fruto de um processo iniciado no Renascimento, acentuado no Iluminismo e em muito alimentado por erros das Igrejas ao longo dos séculos anteriores que diziam muito sobre o que essas instituições faziam e muito pouco sobre o que Jesus ensinou. O que ainda pode-se perceber  é a referência de rituais e símbolos de religiões orientais atuais ou de povos antigos nas representações artísticas de autores ocidentais contemporâneos. Algumas vezes com certa reverência,  mas via de regra sem nenhuma relação de fé.   

O Final do século XIX anunciou um novo século em que as religiões perderiam muito espaço, principalmente na Europa.  Com isso, a razão e a ciência seriam os caminhos naturais e obrigatórios para qualquer análise.  Em pouco tempo, o mundo passou a conviver com o anúncio feito Friedrich Nietzsche de que Deus estava morto, com Freud tendo colocado as religiões judaico-cristãs na base dos complexos e traumas da humanidade e o marxismo tendo eleito as religiões como inimigas da classe operária. Ou seja, a filosofia, a psicanálise e a sociologia tinham colocado no campo das piores coisas da humanidade a fé cristã.

Voltando à minha palestra em 2017, apesar de estar entre muitos colegas queridos, o ambiente não era muito animador. Pra piorar, o meio cultural brasileiro havia sido sacudido pela oposição de igrejas à exposição Queermuseu: Cartografia da Diferença na Arte Brasileira, sob a acusação da mostra ser um incentivo à pedofilia, zoofilia e blasfêmia.

O formato proposto para a palestra não permitia uma tempo muito grande para apresentação. Preparei um material, produzi um vídeo com cenas do filme sobre a vida de  Lutero e fui para Universidade, onde dividiria a fala com um colega do Museu onde trabalho.

Eu estava apreensivo e  me sentia inseguro, mas a primeira parte da apresentação fluiu bem. No entanto, na medida em que eu ia falando e tentando seguir um roteiro o mais laico possível, olhava para a plateia, percebia as feições das pessoas e as ideias me fugiam ao senso da razão. Falavam mais forte em mim as motivações subjetivas da fé.  

Como dizer a eles o que eu acho que Deus fez e tem a fazer no campo das artes, sem gerar um ambiente hostil? Os argumentos fugiam da minha mente e a minha vontade era dizer um monte de coisas que não saíam. Terminei a apresentação praticamente lendo o que eu projetava, sem conseguir desenvolver nada além daquilo.

Não foi dos meus melhores momentos em público, mas acho que o principal objetivo que eu traçara havia sido alcançado. Eu queria dar o primeiro passo  e dei e fazer esse debate aparecer na Universidade em que estudei.



A Palestra na UNRIO em 2017. 

Transcorridos três anos desde a Palestra, eu entendo melhor o que aconteceu naquele dia. Eu comecei meus estudos buscando as influências da Reforma na Cultura e me deparei com o espaço em que Deus havia sido tirado de cena e eu tentava mostrar onde ele estava. Fazia um esforço enorme para buscar justificativas racionais, históricas e científicos para algo que é sobrenatural e inexplicável muitas das vezes.  

Evidentemente, é preciso estudar e buscar as causas desse afastamento e trazer ao debate as consequências da Reforma para a Cultura. No entanto, justamente no último dia 31 de outubro fui tocado profundamente  ao ler um texto enquanto estudava a vida do artista expressionista norueguês Edvard Munch – um  dos gênios da pintura universal, nascido e criado em família protestante  e cuja obra reflete as angústias humanas entre séculos XIX e XX.    

O texto é de Paul Tillich, teólogo protestante e Filósofo da Religião, e está no seu livro – A Coragem de Ser. Ele diz que no final da Antiguidade, as pessoas estavam tomadas pela ansiedade da morte pela fome, doenças e guerras. No final da Idade Média, após anos de opressão religiosa, a ansiedade das pessoas era baseada na culpa. Em meados do século XX, segundo Tillich as pessoas estavam espiritualmente ansiosas pela falta de sentido em suas existências.

O Teólogo talvez não imaginasse em que condições a humanidade chegaria aos anos 20 do século XXI. Depressão, psicopatias graves, suicídios, incertezas, desigualdades, violência, fome, miséria, guerras e intolerância tomam conta da vida das pessoas, sem que elas consigam identificar uma razão para suas existências.

O homem não venceu a morte. A fome, a guerra e a miséria não param de crescer. O homem não perdeu o sentimento de culpa e não conseguiu encontrar nenhuma resposta para sua existência nas soluções que ele criou ao “matar o Deus espiritual” e ter levantado um altar para razão.

Revejo biografias de artistas desde o final do século XIX perdidos em suas angústias. Muitos que ultrapassaram todos os limites do sofrimento existencial e físico só tiveram reconhecimento muito depois de sua morte. As análises desse sofrimento passaram pelas reflexões da Indústria Cultural, pelo complexo mundo da psicanálise e pela  teoria da história da arte.  Todas indispensáveis.  Mas muito pouco, ou quase nada sobre a alma desses jovens artistas. Muitos buscaram a metafísica, religiões de outras culturas e  drogas, como se o Deus Cristão lhes fosse proibido. Buscá-lo era quase uma afronta à arte.

Ao opinar sobre um possível retorno da relação arte e fé (especialmente a fé cristã), Theodor Adorno, filósofo da respeitada Escola de Frankfurt, rechaçou e essa hipótese de maneira enfática no artigo “Teses sobre religião e arte”.  Sua posição, mais que uma constatação, estava envolta numa torcida para que isso nunca mais pudesse ocorrer.

Este é um tema que não se esgotou está colocado diante dos artistas e estudiosos da arte que confessam a fé cristã. Creio que fé, Cristo e arte ainda terão muito a dizer aos corações inquietos desse século.




Referências:

ADORNO, Theodor. Teses sobre Religião e Arte. Marxists, 2018. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/adorno/ano/mes/teses.htm>. Acesso em 02/11/2020

TILLICH, Paul.A coragem de Ser. São Paulo: Paz e Terra, 1976.

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